23.2.23

Trindade

 


O empregado (disse-me) tinha 43 anos e, a observar o modo clássico como se movimentava na sala, hoje ao jantar, dava ares de estar ali desde a fundação da casa. Fiz as contas e concluí que, já adulto, fui, pela primeira vez, à Trindade, a cervejaria, há precisamente 53 anos. Uma década antes do homem nascer. Ou ele é muito novo ou então é isso em que estão a pensar.

A bem dizer, nunca me recordo de ter comido mais do que assim-assim na Trindade. O bife, porque vai-se à Trindade para comer o bife, esteve sempre longe de ser o melhor de Lisboa. 

O bife da Trindade, mesmo o do lombo, antes naqueles pratos metálicos que fizeram escola, esteve, por muitos anos, muito longe do do Império (hoje, fica ela por ela, e isto não é um elogio), do velho Montecarlo ou do Toni dos Bifes, e, sempre, muito abaixo do "rollsbeef" do Café de S. Bento. O senhor Albino, no Snob, ainda hoje tem um bife melhor. O Outro Tempo Bar também. O do Gambrinus, claro, é muito superior - e já teve melhores dias. Simpático continua a ser o do Pabe, como o é o da Sala de Corte. Falam-me da excelência dos bifes do Elefante Branco, mas essa é carne onde, juro!, nunca meti o dente.

Pelo bife do lombo que hoje ali provei (tinha ido em dezembro e a impressão foi exatamente a mesma), a Trindade renovada (porque a casa levou uma forte e arejada reforma, como a imagem ilustra) está feita para uma clientela estrangeira, que deve gostar dos clássicos azulejos e das calçadas de Lisboa que ilustram as novas paredes. Para quem é, aquele bife basta. Ou o "brás de bacalhau" (quem inventou esta corruptela parola, insultuosa para o Bacalhau à Brás, devia ser pendurado eternamente numa espinha), também pedido, que estava desenxabido.

Repito: não tenho especiais saudades da antiga Trindade. Mas recordo ali os almoços políticos socialistas, antes das descidas do Chiado, a 48 horas das urnas. E, bem antes, os fins de tarde dos anos 70, saído da livraria Opinião ou do Centro Nacional de Cultura, quando hesitava entre ir à Casa Transmontana, nas escadinhas do Duque, ao Alfaia ou então à Trindade. Ali havia a certeza de encontrar, na sala de entrada, sempre com uma caneca gigante de cerveja ao lado, um tipo barbudo, com cara de poucos amigos, que fechava todos os dias nesse registo, depois de ter oficiado no alfarrabista, umas portas abaixo, quase em frente aos Anarquistas.

Fui à Trindade hoje, como se vê. E só lá voltarei, não obstante a simpatia solta do pessoal, com muito brasileiro (e gosto de ver brasileiros no nosso comércio), quando me esquecer do bife que hoje quase lá comi.

18.2.23

Tico Tico


Um prego na barra do Gambrinus rimaria bem, em regra, com uma saída da 6a de Mahler, na Gulbenkian. E uma ida ao Tico-Tico costuma ser um complemento adequado ao final de uma noite de futebol que nos correu bem. Mas eu sou do contra, já não vou muito em futebóis e hoje, no fim da música, deu-me para ir jantar à histórica marisqueira do alto da Avenida da Igreja. E não me arrependi. O ambiente continua igual ao que sempre foi: animado, solto, barulhento, sem cerimónias. O serviço é rápido, com empregados antigos, diligentes e corteses q.b.. A lista é, basicamente, a de sempre, com a lampreia na "saison". O preço é bastante em conta, em especial atenta a especulação que por aí grassa. A relação satisfação/preço foi boa. Já tinha saudades do Tico-Tico. Vou regressar em breve.

14.2.23

O romantismo já não é o que era!


Eu e um amigo decidimos levar as nossas mulheres a jantar fora, hoje, no dia dos namorados. Como tenho, em geral, esse pelouro, foi-me solicitado que escolhesse e reservasse o restaurante. E assim fiz! Porém, quando anunciei que iríamos jantar ao Orelhas, em Queijas, fiquei com a sensação de que a minha seleção pode ter pecado por algum défice de romantismo. Também acham? Paciência! De uma coisa tenho a certeza: vamos comer bem!

13.2.23

Quatro belas mesas alentejanas

Aqui ficam brevíssimas e impressionistas notas sobre quatro bons restaurantes visitados no passado fim de semana.


MERCEARIA DO GADANHA (Estremoz. Largo Dragões de Olivença, 84, Tlf 268 333 262) - O melhor restaurante da cidade, para comida tradicional. Lista muito equilibrada e rica. Bela seleção de vinhos. Nas várias experiências que por ali tive, ao longo de anos, comi de forma excelente e fui muito bem atendido. O pessoal tem grande simpatia e profissionalismo, testado na sexta-feira na forma inteligente como vi sanar um incidente ocorrido com clientes mais recalcitrantes. O ambiente é solto, a decoração é leve e o espaço acolhedor. Um ponto menos positivo: achei exagerados os preços da carta de sobremesas.


TABERNA TINTOS E PETISCOS (Vaiamonte. Rua 25 de Abril, 6, Tlf. 960 248 138) - Ainda não tinha regressado a esta casa depois da mudança de instalações. Desde já, parabéns pela rua que escolheram! Posso estar equivocado, mas este foi talvez o restaurante de qualidade onde, até hoje, encontrei uma carta mais rigorosa e completa de comida alentejana, sem concessões. O espaço reservado aos vinhos, com as garrafas com o preço “ao pescoço”, é uma preciosidade, sendo aí guiados pelo conhecimento dos proprietários, um casal que faz as honras da casa e presta o apoio às mesas. Um ponto menos positivo: o desenho um tanto esconso da entrada. Mas fomos ali para comer. E comemos muito bem.


TOMBA LOBOS (Portalegre. Rua 19 de junho, 2, Tlf. 245 906 111). Foi a segunda vez que estive no novo espaço do Júlio Vintém, depois de o ter visitado em todas as outras localizações onde operou. Não é bem verdade: não fui vê-lo ao Recife, mas tive-o a “atuar” na embaixada em Paris. Neste Tomba Lobos criou um belíssimo ambiente, na parte velha da cidade. Às mesas, mantem-se o profissionalismo quase imbatível do Apolínio, com o seu asterixiano bigode e uma imensa simpatia, uma figura sempre presente em todas essas anteriores ocasiões. (Um dia, creio que na revista “Epicur”, dei à crítica que fiz ao restaurante o título de “O bigode do Apolínio”). Também anda já pela sala um filho do Júlio e da Catarina, cara chapada do pai, bem como um empregado e excelente enófilo, que, por um segundo, me pareceu ser um ministro recentemente caído em circunstancial desgraça. O Júlio Vintém, um mestre da culinária, tem vindo a apurar a sua oferta ao longo dos anos. O menu era variado e de muita qualidade. Os oito convivas saíram bastante satisfeitos. Um ponto menos positivo: o naco de lombelo ao alhinho estava com uma textura demasiado rígida. 


DOM JOAQUIM (Évora. Rua dos Penedos, 6, tel. 266 731 105). Foi uma chamada do meu saudoso amigo Jorge Coelho que me alertou, um dia, para este restaurante: “Meu querido amigo. Acabo de comer muito bem no Dom Joaquim, em Évora. Não conhece? Tem de conhecer”. Fui lá, meses depois, e fiz uma crónica dessa visita, creio que para a revista “Evasões”. Não é nada fácil, numa cidade com a excecional oferta gastronómica que Évora tem, conquistar um espaço próprio. Mas o Dom Joaquim consegui-o. Com imenso mérito. A lista é muito boa e equilibrada. Comeu-se bem. Era domingo, a casa estava a abarrotar e o ritmo do serviço ressentiu-se. O “vou já avisar o meu colega para vir aqui” é uma fórmula que resolve o problema ao empregado, mas não ao cliente. Esse é o ponto negativo a apontar: num certo momento, com toda a mesa servida, um dos convivas esperou irritantes longos minutos para também ter o seu prato. Mas o empregado com barba “hipster” que nos serviu foi bastante profissional, até nas desculpas. Lá voltarei, ao Dom Joaquim.
***
Aqui ficam as notas, com a grande simpatia que me merecem todas as casas. Locais onde é imperativo reservar, com alguma antecedência. Com vinhos num escala não muito exagerada, a refeição em todos rondou os 35 euros por pessoa. Em todos os casos, pareceu-me justo, atenta a qualidade daquilo que foi consumido.

9.2.23

“Primeiro de Maio”

 


Quando, há mais de meio século, trabalhei por uns anos na Caixa Geral de Depósitos, a “Antiga Casa Primeiro de Maio”, ao lado, na descida da rua da Atalaia para o Calhariz, era uma “tasca de almoço” (classificação íntima) que, contudo, não era pouso regular do meus assimétricos grupos de amigos e conhecidos. 

Porquê? Porque, à época, tinha um preço ligeiramente mais alto do que outros locais similares e, nesse tempo, entre os meus colegas, havia quem tivesse de fazer bastantes contas à vida. Por isso, eu só raramente passava por lá, tal como pela vizinha “Primavera do Jerónimo”, que a fotografia assinada da Josephine Baker, no caixilho na parede, elevava a lugar de culto, com o toque turístico a refletir-se no preço dos históricos filetes de pescada. 

Esse era o tempo de um outro Bairro Alto, ainda sem “Frágil” nem “Pap’Açôrda”, onde não tinham despontado o “Casanostra” ou o “Bota Alta”, em que, para a noite, o “Alfaia” já estava na moda e à medida dos nossos bolsos, tal como, um pouco mais tarde, aconteceria com o “Baralto”, o “Fidalgo” e a “Tasca do Manel”. A “Baiuca” e o “El Ultimo Tango” ainda estavam para nascer. Do que por lá vai agora, nem sombras.

Mudei entretanto de ofício e de geografias de trabalho. A partir dos anos 80, quando vivia ou visitava Lisboa, era regular visitante do “Primeiro de Maio”. Aos sábados, era a minha cantina de almoço, sempre com a cinematográfica figura de António Lopes Ribeiro, já bem entrado na idade, a dominar uma das mesas. O “Primeiro de Maio” foi muito “trendy” por bastantes anos, com figuras e figurões bem conhecidos, da política à cultura, por ali amesados.

A cara tutelar do “Primeiro de Maio” era então o senhor Santos, com a sua mulher na cozinha. O seu sorriso acolhedor recebia-nos mal surgíamos no alto dos degraus de entrada. Nesse tempo em que reservar era a exceção, a regra, para nós, era aparecer uma mesa quase por milagre, com intimidade garantida com inesperadas vizinhanças, entre as quais cheguei mesmo a criar amizades. Belos tempos esses!

Entre as mesas do “Primeiro de Maio”, a certo momento, passou andar o Mário, sobrinho do senhor Santos, um miúdo que ajudava ao serviço. Desde que o tio se reformou, passou ele a ser a minha âncora numa casa onde, contudo, ultimamente não tenho ido muito. Fui hoje, com uma tertúlia aperiódica de cavalheiros que andam pela vida como os ingleses conduzem pelas estradas, um grupo que não tem pouso fixo, que erra (às vezes acerta) por vários endereços.

O Mário lá continua, à frente da casa, sempre simpático, herança boa do tio, que vive a merecida reforma na Beira. Os turistas que, aqui há uns anos, tornavam o espaço numa Babel às vezes excessiva, desapareceram, desde há uns tempos, para as centenas de outras paragens que vão abrindo e fechando por essa Lisboa. O que havia de gente a mais, num certo período, parece haver a menos, nos dias que correm. E é pena.

Um conselho para antropólogos amadores com bom gosto, curiosos de uma certa Lisboa do passado que ainda por aí subsiste: passem pelo “Primeiro de Maio”, almocem ou jantem num local que terá sempre uma linha bem estimável na história da restauração de Lisboa. Vão lá sem a menor nostalgia, apenas porque sim. Ah! Podem dizer que vão da minha parte (não tenho comissão, garanto!) e peçam sugestões ao Mário. E aproveitem para descobrir os belos vinhos que sempre houve por lá.

Onde é? É na rua da Atalaia, 8, com o telefone 213 426 840.