Todas as nostalgias valem apenas o que valem, até porque, no passado, muito provavelmente, o nosso grau de exigência era menor e o paladar menos apurado. Isso não evita que tenha saudades de alguns restaurantes lisboetas que já desapareceram, onde passei muito boas horas - a comer, a conversar, a beber, enfim, a viver.
Aproveitando uma nota deixada, há dias, no Facebook, por Luís Pinheiro de Almeida, alguém que se dedica a esse impecável serviço público que é descobrir sítios de “bem comer” a preços razoáveis, vou fazer aqui um bosquejo rápido por mais de meia centena dessas boas mesas perdidas (deixo as más ou “esquecíveis” para outros voluntários), de muito diferente natureza, de uma Lisboa que se foi. Deixarei de lado, em princípio, restaurantes que ainda mantêm o mesmo nome, mudando embora o registo da oferta.
Comecemos, geograficamente, pelo Parque Mayer, onde, mais do que o tipicismo do “Chico Carreira”, ficou a boa memória do “Manel”.
Um pouco mais acima, nas escadinhas do Duque, que bem que se comia na “Casa Transmontana”! E atravessemos para o Bairro Alto, onde só sinto saudades do “Primavera do Jerónimo”, com os imperdíveis filetes de pescada e, claro, do eterno “Pap’Açorda”. Com tanta coisa boa e um ambiente inédito nessa Lisboa dos anos 80, o restaurante foi um belo “pontapé-no-charco” de um bairro que começava a sair da banalidade e entrar na moda. Agora, mudou-se para o mercado da Ribeira. Mas já não é a mesma coisa aquela “espera social” (e logo eu, que não sou nada de esperas!) no balcão, até que o Fernando ou o José Miranda nos arranjassem uma boa mesa. No Bairro Alto, alguns nomes de antigos restaurantes foram conservados, mas o “conteúdo” mudou bastante em alguns deles - em poucos casos para melhor.
O “Pedro Quinto” (que substituiu o “João Sebastião Bar”), do meu amigo Juvenal, fez as honras à artéria vizinha com o nome, com uma lista curta mas interessante. Nesse tempo, tinha já por ali desaparecido a “Charcuteria Francesa”, de muito boa memória, que depois deu a designação a uma outra casa simpática, junto à igreja de S. Mamede, que a voragem dos trespasses levou também. Um pouco mais abaixo, na esquina com o Salitre, deixou saudades moderadas o “Pedro e o Lobo”
Umas centenas de metros adiante, no Príncipe Real, ficava, até à pouco, uma das glórias antigas da cidade, o simpático “Faz Frio”, agora entaipado à espera de um qualquer espaço da moda. E próximo, o “Quanto mais gente melhor”, onde cabia mais gente do que parecia. No mesmo quarteirão, há uma casa que vai mudando de nome, mas a que eu achava graça quando se chamou “Romanov”, designação que honrava a memória dos czares, o que uma noite estimulou a visita ruidosa dos nostálgicos da Revolução de Outubro. Mesmo em frente, junto ao chafariz, do lado do “Snob” havia uma minúscula mas bela tasca nos anos 90, que também andou na moda, e cujo chefe vim depois encontrar em Alfama.
Continuando a caminho do Rato, a “Rota das Sedas”, que tinha dias, foi o meu pouso semanal numa tertúlia que agora mudou de ares. Por ali ficava a estimável “Esplanada do Rato”, onde se comia “tant bien que mal”.
A geografia leva-nos agora abaixo, à praça das Flores, onde o “Conventual” fez época, com a sua notável mesa de doces. Muito e bem por lá comi! Ainda um pouco mais abaixo, por São Bento e Madragoa, houve algumas casas que mudaram de nome. O “Constituinte” e o “Bolixa” foram poisos que me ficaram na memória, mas nenhuma saudade imensa me deixaram. Ou melhor, talvez apenas a antiga “Travessa”, “as belgas”, com um ambiente excelente, que depois se subdividiu na nova “Travessa do Convento das Bernardas”, onde ainda está a Vivianne, e no “Guarda-Mor”, onde já não está a Sofia.
Duas notas para casas desaparecidas, ali perto. Um pequeno restaurante de duas irmãs nos Poiais de São Bento, os “Bichos”, onde ia com um amigo deputado. Perto, no fundo do Poço dos Negros, houve um simpático restaurante com comida marroquina, chamado “Mercatudo”.
Bem mais adiante, em Alcântara, isso sim!, uma grande nostalgia: o “Painel de Alcântara”, do magnífico Cardoso, um amigo que mudou de mundos. E também havia ali o “Cuidado com o Degrau” (que tinha um perigoso degrau à entrada!), onde se chegou a comer bem, num espaço com alguma graça. E, ali bem perto, fechou há semanas o memorável “Retiro do Chefe Costa”, uma casa de que eu gostava bastante.
Três notas de proximidade. Na Gare Marítima de Alcântara houve um belo restaurante, cujo nome me escapa, com influência indiana: tinha uma bebinca como poucas que comi. Em Belém, faz falta o belo “São Jerónimo”, onde se comia muito bem, num ambiente elegante. E, passando “por cima” da linha férrea, uma nota de nostalgia para o fim do “Espelho de Água”, na sua mais clássica forma. Um quilómetro adiante, em Algés, foi pena ter desaparecido o velho “Petit Restaurant”.
Regressando a Leste, e subindo a Campo de Ourique, faz-me bastante falta a “Tasquinha da Adelaide”, com a saudável alegria da dona. Eram 29 lugares sentados que várias vezes “fechei” para amigos, com uma cozinha onde a simplicidade era o segredo. Há restaurantes que não entendo por que fecham, e a “Tasquinha” é um deles! (Há outros que não entendo por que abrem e ainda outros que não sei por que diabo se mantêm). Uma nota também, ali perto, para o “Caldeiro”, na Silva Carvalho, também um pequeno espaço de comida séria e lugar de bela conversa. Até o “Bem disposto” se foi e, com ele, dos melhores pasteis de massa tenra da capital. Mas, tirando dois indianos que dali desapareceram (mas ainda existe um, junto ao mercado, que pouca gente conhece), Campo de Ourique continua hoje muito bem e recomenda-se francamente à mesa.
Nas Amoreiras, ao lado do Procópio, deixou boa memória o “Mãe d’Água”, onde Angel Candeira, depois do “Angelus” do fondue a caminho de Sesimbra e do excelente “Porta Branca”, encerrou a sua carreira. A dois passos, foi uma grande pena ter desaparecido, na Artilharia Um, o excelente “Mezzaluna“. Menos memória deixaram os grelhados do "Chester”, a dois passos.
Um pouco mais acima, na Padre António Vieira, tenho boa recordação do “Ivo’s”, a primeira hamburgueria de Lisboa. Na mesma rua, ao que me recordo, houve a primeira pizzaria da capital, mas não me deixou nenhuma memória afetiva, pelo que não deve ter sido coisa notável.
Passando ao vizinho Campolide, nunca tendo sido um marco gastronómico, o “Olho do Cuco” era um paraíso para os tête-à-tête, que só se mantinham discretos porque se empatavam no embaraço...
Na praça de Espanha, claro que se sente a falta da “Gôndola”, com as empregadas de avental, a lembrar a “Quinta”, no alto do elevador de Santa Justa, que também se foi. E, no que me toca, ali perto, o fecho recente do “Castro Elias” deixa-me alguma mágoa.
Seguindo pelas Avenidas Novas, além das sardinhas da Feira Popular, tenho pena de se ter perdido o “Toni dos Bifes” e, não muito longe, o excelente “Telheiro”. Mas a mágoa do fim do restaurante do “Montecarlo”, essa sim! é inapagável. Aqueles bifes, as notas indianas e aquele inigualável pão pequeno ficaram-me na memória gustativa. Para o fim da noite, o “Monumental” também dava muito jeito. Boas recordações, mais recentes, deixou também o “Cinco do Dez”, na 5 de outubro, tal como o “Funil” de outros tempos, uma casa onde as famílias assentavam nos fins-de-semana.
Passando para outras Avenidas então novas, outra nota para a “Isaura”, uma cave na Avenida de Paris, onde se comia bem e se bebia melhor, com a garrafeira à nossa volta. Perto, havia também o “Cunha” e o “Paris”, onde, ao contrário da “Isaura”, se subia para a sala.
No Campo Grande, quem se lembra do “Antigo Retiro do Quebra Bilhas”, com o seu belo espaço exterior? Nunca se comeu excecionalmente, mas o ambiente de tasca “fora de portas” era magnífico.
Muito perto, no Areeiro, houve uma bela cervejaria, a “Munique”. Uma nota, muito sentida, para a minha “cantina”, por anos, a “Imperial do Campo Pequeno”, na Sacadura Cabral, avenida ao fundo da qual havia também uma bela tasca, desaparecida ainda nos anos 70, o “Chico”, com bom peixe e os tradicionais tabiques de madeira.
Notas finais.
Nos restaurantes “topo de gama” que fazem falta noto o “Nobre” da Ajuda (hoje há outro por lá, muito diferente e noutro lugar), o “Clara” no Campo de Santana, o “Clube dos Empresários”, numa bela casa hoje em ruínas na avenida da República, o velho “Coelho da Rocha” (da escola do “Gambrinus”) e, um “degrau” abaixo na escala, o “Saddle Room”, em frente ao liceu Camões. Não longe deste, do outro lado da Fontes Pereira de Melo, comia-se muito bem no “António”. Não ficava muito perto, mas, na Antonio Augusto António de Aguiar, era muito simpático o “Petite Folie”.
E alguns outros restaurantes agradáveis, mas cujos nomes já se me varreram? Um belga, numa transversal à Alameda Afonso Henriques. Um açoreano nas traseiras do CDS, ao Caldas. Um pequeno à esquerda de quem subia a Cecílio de Sousa. Um minhoto do lado esquerdo de quem subia a Calçada de Carriche. Uma bela casa, creio que num páteo, em Sete Rios.
Finalmente, um local onde acabei muitas noites e vi começar alguns dias, o restaurante da Rotunda da Encarnação, nas bombas de gasolina, entre o Aeroporto e os Olivais, onde vivi por alguns anos.
Acabo como comecei: nos dias de hoje, Lisboa tem uma oferta gastronómica de muito maior qualidade e variedade. Mas deixar algumas notas sobre aquilo que nos sustentou, com gosto, a vida passada é um ato de justificada gratidão.