Como transmontano, confesso que nunca me reconciliei com a
leitura de “campo” de muitos dos meus amigos lisboetas, frequentemente reduzida
às longas planuras do Alentejo. Para quem nasceu “para além do Marão”, campo é
outra coisa: são as serras, as montanhas, as pedras escalavradas e as urzes
bravas. Por tudo isso, como cenário possível de compromisso a Sul, o Alto
Alentejo é a zona onde me sinto bem. Tem, da região alentejana, todos os
paladares e maneira de estar, conserva os seus inigualáveis ritmos do tempo, mas
surge já cruzado com a dureza do terreno que se abre às Beiras, terras que me
são mais próximas.
Fui há dias ao Alto Alentejo à procura de um cultor sereno
dos sabores da região, o José Júlio Vintém. Conheci-o há um bom par de anos,
quando agarrou, com maestria, um espaço simpático no centro da cidade de
Portalegre. Segui-o depois, ao longo do tempo: vi-o já ali, numa moradia de
periferia da cidade, em cenário rural, onde combina uma sala mais tradicional
com um local adequado ao freguês do petisco, que, o tempo ajudando, pode acabar
a acomodar-se na tertúlia galhofeira numa esplanada dianteira. Soube da
aventura no Brasil e, agora, deste saudável regresso às origens. Que se saúda!
Com o José Júlio, a minha regra é irrevogável: deixo-o ir
trazendo da cozinha o que o estiver para sair. Vieram assim, para além do
excelente pão local, uma salada de beldroegas, um queijo de cabra assado no
forno com orégãos, tibornas de tomates com azeite e uns peixinhos da horta - uma
entrada simples por cuja textura “al dente” eu costumo testar o dedo dos
cozinheiros. Por ali, nunca se enganam. Ah! E umas bolas panadas de rabo de
porco, que, à vista, até presumi de alheira. Fechei as entradas com uma
saborosa perdiz de escabeche, em cama de espinafres.
Que teria eu perdido, entretanto? Olhei a lista e lá estavam
“paletes” de petiscos, que ficam para uma próxima vista, de que lhes deixo uma
pequena amostra: pétalas de toucinho de porco alentejano no forno, rabinhos de
tomatada panados, coelho em molho de vilão, molejas de borrego salteadas e umas
inusitadas favas com morangos e enchidos do norte alentejano. E muito mais.
Nesse cardápio, surgiam umas iniciais misteriosas: PA, CA,
TA. Lá me esclareceram: “produto alentejano”, “confeção alentejana”,
“tipicamente alentejana”. Ali não se brinca em serviço!
Deixei os petiscos de entrada, terreno onde, como se sabe,
no Alentejo se pode fazer uma refeição completa. Segui depois por uma açorda
gratinada de fraca, com poejo, quiçá avinagrada um pouco demais para o meu
gosto. Fechei este capítulo com um excelente rabo de boi guisado, de carne
certificada.
Regressei à consulta da carta, para mais uma dose de angústia
sobre o que entretanto perdera. Ali estavam, por exemplo, as sardinhas
albardadas com açorda de coentros, o peito de galo recheado com farinheira, os
nacos de vitela ao alhinho, com azeite virgem. E, claro, as sopas, açordas e
migas, mas também diversos pratos com viandas de porco, touro, pato ou javali,
além de vários usos criativos de bacalhau.
A lista de sobremesas é curta, mas cuida em separar os doces
conventuais (o torrão real, os fartes, o queijinho de ovo) das receitas
regionais, onde estão a boleima de maçã e um pudim de queijo com pétalas de
rosa, além de outros bolos e tartes com marca local.
A carta de vinhos também não é muito longa e, naturalmente,
privilegia os alentejanos. Por recomendação da casa, fui para um “Terrenus”, tinto
de 2011, ali mesmo da Serra de S. Mamede, não muito denso, com um final
prolongado agradável na boca. E preço módico que ajudou a uma conta que foi “em
conta”, mas que sempre variará com o apetite do cliente.
Que recomendo ao visitante que vá de longe? Desde logo, que antes
inquira o que de especial lhe pode ser preparado, se não quer perder alguns dos
pratos que aqui leu. Ou que arrisque o que houver, porque o risco é sempre
escasso.
O “Tomba Lobos” renasceu neste subúrbio de Portalegre. Que
tenha longa vida!
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* É o farfalhudo bigode do Apolino, o colaborador de sala
que segue o José Júlio desde a casa original, que primeiro nos recebe com o seu
sorriso franco. Cúmplice discreto dos usos da casa, o Apolino é hoje um
cicerone atento.
* O Tomba Lobos existiria sem a Catarina? Duvido. Ela é a
força motriz ao lado do José Júlio, dona de uma ironia sofisticada, companheira
firme e serena de todas as horas.
* “Em Portalegre, cidade do Alto Alentejo, cercada de
serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros, morei numa casa velha, velha
grande tosca e bela, à qual quis como se fora feita para eu morar nela”, in
Toada de Portalegre, de José Régio
* A serra é a vida do José Júlio. As hortas onde cultiva, os
pequenos produtores que acarinha, a caça que traz para a cozinha, os amigos com
quem faz tertúlia. Conheceu muito mundo mas é naquela serra que decanta anos de
mesas e vivências, numa cozinha que só é pretensiosa na qualidade.
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Tomba Lobos
Bairro da Pedra Basta, 16
Sé,
7300-529 Portalegre
Tel: 245 906 111
Estacionamento fácil
Wifi
Não fumadores
Encerra: domingo ao jantar e 2ª feira
Tivesse vivido até aos dias de hoje José Régio, que tanto gostava de Portalegre, e poderia também saborear esses belos petiscos. Em face da ementa que anuncia no seu post, nem dá vontade de frequentar os restaurantes de Lisboa...
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